segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Palavras que atrapalham e ajudam a viver



"Mas você sabe que a pessoa pode
encalhar numa palavra e perder anos de vida?"
(Clarice Lispector)
Vejam só: encalhar numa palavra.
A pessoa lá vai no seu barquinho vida adentro e, de repente, encalha numa palavra.
Pode ser “ marxismo”, “Deus”,”pai”, “vanguarda”, “revolução”, “Paris”, “aposentadoria”.
As palavras são paralisantes.
O Brasil, por exemplo, no princípio do século estava encalhado na “febre amarela”.
Nos últimos anos reencalhou na “ditadura” e na “censura”.
Tem hora que encalha na “inflação”.
Agora encalhou no “desemprego”.
E está difícil desencalhar da “reforma agrária”, da “corrupção” e do “subdesenvolvimento”.
Os escritores, sobretudo, encalham muito nas palavras.
João Cabral se referia a Graciliano Ramos como um homem “com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol”. Joyce, com Ulisses e Finnegans wake encalhou titanicamente numa região cheia de palavrosos icebergs .
Alguns poetas que conheço estão há cinqüenta anos engastalhados em palavras como “Pound, ideograma, morte do verso, Joyce, un coup de dès”, e não há quem os demova.
Quem leu O nome da rosa se lembra que havia lá na biblioteca medieval um texto impossível, envenenado, como o fruto interditado no meio do jardim.
É que as palavras, com essa coisa de se plantarem em nossa vida, nos alimentam e nos matam, são remédio e veneno, e, como os produtos de uma farmácia, são drogas que podem sarar ou curar.
É uma questão de alquimia verbal saber administrá-las.
Aurélio Buarque de Hollanda, que dicionarizava rebanhos de palavras, enfatizando o lado positivo das palavras, me disse um dia: “nós temos que dar oportunidade às palavras”.
Entendi isto como uma sugestão para a gente se desencalhar e ir desfrutando palavras novas, como o amante que com um novo amor renasce vida afora.
Em algumas culturas certas palavras não podem sequer ser pronunciadas, pois trazem desgraças.
Mas em algumas narrativas certos vocábulos abrem grutas , cofres e corações.
Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”.
Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor.
Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação.
Ler é tomar a palavra alheia, vesti-la, habitá-la por certo tempo.
Escritor, no entanto, não é aquele que acumula palavras obscuras num egoísta museu ou cofre de erudição, mas quem as troca na bela moeda da emoção.
Eis um bom exercício:
tome um lápis e anote as palavras que paralisaram ou fizeram sua vida avançar.
Palavras-coisas, palavras-pessoas.
Sobre a vida e sobre as palavras há várias teorias, a escolher.
Há quem diga que a vida tem que ser palavras em movimento, aquele work-in- progress de que falam os ingleses.
Se você encontrar, vinte ou trinta anos depois, uma pessoa fazendo o mesmo discurso, tenha pena, desconfie, é sinal que a vida dela emperrou.
( A menos que seja um discurso de amor).
Com as palavras a gente tem que tomar cuidado, pois no primeiro encontro nos libertam, depois nos aprisionam.
Há palavras tão duras e montanhosas, que nem com trator, só dinamitando.
E o fato é que um simples “bom dia” ou “alô” pode salvar uma vida.
A psicanálise pretende ser o método da “cura pela fala”, mas também pode se tratar pelo ouvido.
As palavras ouvidas também curam.
Vejam a mãe soprando o dedinho do filho dizendo: “já passou o dodói, pronto”.
Viver também é a arte de lidar com as palavras.
E como já disse alguém - as palavras são caminhos para encontrar as coisas perdidas.

Fonte: Affonso Romano de Sant'Anna



Um comentário:

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